quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Gólgota

O escapulário que deixastes
de seus dedos em meus seios

não mais vejo.

Meu sexo
- pequeno escrínio
de teu sêmen -
foi fechado à chaves.

Não se abrirá nem com seu beijo.

Já sumiu do meu corpo
o sudário de tua pele
e teu cheiro,

pois foi longo meu calvário.

Trataste com escárnio
o milagre, a coisa sacra
que habitava os sotãos
cheios de arcas:

Eu, teu relicário.

Flávia Perez

Celeste em tarde nascer

sequestrei o sol do teu sorriso,
o escondi e dele me alimentei

quando voltei para sugar
silêncioso, mais do teu calor

encontrei tua alma
com um sorriso sem dentes.

um estreito riacho sem pedras
preciosas

seus olhos, azulescência pura,
eram agora o fundo de um lago

sem o soul da sereia que dançava
em ti.

sequestrei o sol da sua alma

agora escravo vago condenado
assassino da tua luz.

Wilson Roberto Nogueira

sábado, 4 de outubro de 2008

Tropa de Elite

Ingênuos que lêem Foucault
Heróis que empalam garotos
Toda ajuda é hipócrita
Tortura é a solução
Morte à alteridade
Aplausos histéricos à autoridade
Dos caminhos o mais curto,o mais fácil.
Fácil?
Desde que não atrapalhe o trânsito
e que não manche de sangue
os nossos sapatos, calçadas e filhos.
E desde que não perturbe nossas refeições.
Não nos embrulhe os estômagos
com a desagradável visão desses
pretos,
pobres,
sujos e maus
garotos estraçalhados.

Quem somos nós?

Pretensa elite que goza o mundo
e que cheia de medo
assina cheques, contratos e penas.
Elite que, cheia de dentes, berra:
Paz!
Justiça!
Honra!
Basta!
Basta de tiros em nossos quintais,
de mendigos em nossas calçadas,
de malabaristas em nossas esquinas.
Paz
no asfalto
na escola
no shopping.
Paz, no morro, engatilhada
Cano ainda quente
sujo de saliva e medo.

Pobreza pacificada,
silenciada até o próximo carnaval.

Salve a liberdade burguesa,
a invisibilidade do outro,
os gritos que não descem o morro!
Um viva aos novos heróis da pátria
com seus uniformes negros!
Carrascos com carteiras assinadas.
Durmamos em paz
e deixemos pra eles a honrada missão
da manutenção desse nosso gozo infindável...

Thorpo

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Você

eu que por pouco não sou transparente
apesar de minha solidez aflitiva
filho de todas as razias
eu que por mais um pouco seria invisível
eu que saio de casa para entrar no mundo
que enxergo, como henrika,
peixes nas poças de chuva

eu que sou um franciscano brutal
que alimento os pombos com parafusos
um relógio onde o tempo se estraga
que nunca superei as drogas
que nunca venci aquela paixão
que não posso ver uma mesa de cartas

eu que como papel entre
goles de tinta
que tenho a chave para as praças da cidade

eu que bebo com os cavalos as águas estigiais
que oxido de urina a lua
que construí escadas que vão dar no teto – como
madame winchester – que inventei janelas inacessíveis
construí mansardas sem alicerces
que levo na mudança meus fantasmas
e tenho uma mitologia de cães cegos

eu que sou esta florescência de miasmas
cuja alegria é uma careta, cujo sangue é de auroras
cujos ossos são de tijolos, cuja alma é de querosene
e o sonho
é apodrecer exalando música
eu que guardo uma gaivota na traquéia
que tenho cabelos no coração
e rins de diamante

que saio pelas ruas como uma charanga de calúnias
eu que vadio as estrelas
eu que desconfio dos poderes sobrenaturais da linguagem
e que ainda assim digo, grito desesperadamente as coisas
como se fosse arrastado por um desacampamento
de ciganos, como se uma guerra (ou uma saudade)
começasse por minha causa
como se um mágico tirasse moedas de minha
boca, como se as esferográficas guardassem a velha
herança das navalhas ruins,
como se houvesse fios de alta-tensão
entre nossos corpos

eu que vivo o precário vaudeville dos instantes
que aprendi a dar cambalhotas com os bobos
de shakespeare e os retardados
cujo bom-senso é o pavio da combustão
cujo reino é uma cratera, cuja coroa é o nariz
do palhaço, e o assassinato um ressuscitar-se

eu que sou, às quatro da manhã, a única janela acesa
eu que me intoxico de deus
que perdi a identidade, o ônibus, a graça,
que perdi os sisos, que perdi
o bilhete premiado, o fio de ariadne,
a lembrança do paraíso e do inferno

e que, ainda assim, volto para casa sangrando
como quem assobiasse

eu que faço parelhas para os afogados
que sempre quis ser o poeta de tróia
o poeta da boca-de-fumo, o poeta de porta-de-cadeia
o poeta dos obituários, o poeta oficial das alvoradas,
o poeta oficial da vila hauer
e que, ao fim, não sou poeta oficial nem de mim mesmo

eu que toco trombone dentro de uma piscina vazia
eu que tenho queimaduras de terceiro grau por dentro
que cato os rebotalhos da cultura materialista e reciclo
do jeito que dá e não dá, e junco de esperança todos
os impedimentos

eu, exilado do país infinito
eu que manipulo venenos, que enlouqueço sozinho
e subo a montanha
como um profeta que engoliu a língua

este ser fronteiriço
entre azul e precipício

que escovo os dentes com chuva e maçarico

eu, meu corpo
que tenho a espessura da vida
e o tamanho exato
de meu cadáver

eu
coluna de fumaça
espelho quando mente
ferragem retorcida
rosto em branco (como um edifício ou um anjo
transitório)
minha cara inconfundível

uma palavra

(r
e
l
â
m
p
a
g
o) que não acaba nunca


Rodrigo Madeira

Mulher Sentada

Sim, somos tristes
Além de ser sozinhos
Somos tristes
Como quem perde o ônibus
Como quem se senta num banco de praça
Como o atleta que tropeça no obstáculo
Triste! Triste!
Como só um cavalo
No meio de um prado imenso
Poderia estar
Como quem pede um pingado
Como quem acende um cigarro
Como quem finge que não ouviu nada
Mil vezes triste afinal
Como o mercado vinte e quatro horas
Onde se pode comprar lâminas
Ou carne congelada a qualquer hora
Triste como nem o diabo!
Como quem abre a geladeira de madrugada
E não distingue o som da Tv no quarto
Como o outdoor que promete a alegria
No produto cuja marca faliu
Como quem sai do cinema sozinho
Como a criança a quem perguntaram:
- Onde está sua mãe?

Otávio Luiz Kajevski Junior

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Sob as cortinas do sétimo andar

Eu falo com a minha planta. Ela é bobinha e apenas ri das maluquices que invento sobre tua pessoa. Um dia, quando passares chovendo embaixo da minha janela, apresentarei ambos assim: um ao outro em ato de reconhecimento. E gargalhadas verdes ecoarão pelos corredores do condomínio.
Josiane Ükma

Tanto Faz

um infinito de porquês eternos
poderíamos arrotar durante horas
argumentando o que não tem porquê

ou catando razões no paliteiro
para tirar dos dentes aquelas verdades incômodas

falamos na língua mais presa
e os pés medem o mesmo tamanho
somos quase iguais e quase somos nós

no limite do sucesso particular
e na beira do abismo psicológico
entre o que todo mundo é
e o que esse mesmo todo mundo condena ser

a loucura bate na porta
mendiga porquês

ignorar é um bom passo
mas daqui a pouco nem pão
nem mão, a desigualdade te toma o braço

e nessa brincadeira, quem é você?
e quem sou eu, nessa encruzilhada para ratos?

a resposta mais coerente me parece ser: tanto faz.

Cadu Oliveira