quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Você

eu que por pouco não sou transparente
apesar de minha solidez aflitiva
filho de todas as razias
eu que por mais um pouco seria invisível
eu que saio de casa para entrar no mundo
que enxergo, como henrika,
peixes nas poças de chuva

eu que sou um franciscano brutal
que alimento os pombos com parafusos
um relógio onde o tempo se estraga
que nunca superei as drogas
que nunca venci aquela paixão
que não posso ver uma mesa de cartas

eu que como papel entre
goles de tinta
que tenho a chave para as praças da cidade

eu que bebo com os cavalos as águas estigiais
que oxido de urina a lua
que construí escadas que vão dar no teto – como
madame winchester – que inventei janelas inacessíveis
construí mansardas sem alicerces
que levo na mudança meus fantasmas
e tenho uma mitologia de cães cegos

eu que sou esta florescência de miasmas
cuja alegria é uma careta, cujo sangue é de auroras
cujos ossos são de tijolos, cuja alma é de querosene
e o sonho
é apodrecer exalando música
eu que guardo uma gaivota na traquéia
que tenho cabelos no coração
e rins de diamante

que saio pelas ruas como uma charanga de calúnias
eu que vadio as estrelas
eu que desconfio dos poderes sobrenaturais da linguagem
e que ainda assim digo, grito desesperadamente as coisas
como se fosse arrastado por um desacampamento
de ciganos, como se uma guerra (ou uma saudade)
começasse por minha causa
como se um mágico tirasse moedas de minha
boca, como se as esferográficas guardassem a velha
herança das navalhas ruins,
como se houvesse fios de alta-tensão
entre nossos corpos

eu que vivo o precário vaudeville dos instantes
que aprendi a dar cambalhotas com os bobos
de shakespeare e os retardados
cujo bom-senso é o pavio da combustão
cujo reino é uma cratera, cuja coroa é o nariz
do palhaço, e o assassinato um ressuscitar-se

eu que sou, às quatro da manhã, a única janela acesa
eu que me intoxico de deus
que perdi a identidade, o ônibus, a graça,
que perdi os sisos, que perdi
o bilhete premiado, o fio de ariadne,
a lembrança do paraíso e do inferno

e que, ainda assim, volto para casa sangrando
como quem assobiasse

eu que faço parelhas para os afogados
que sempre quis ser o poeta de tróia
o poeta da boca-de-fumo, o poeta de porta-de-cadeia
o poeta dos obituários, o poeta oficial das alvoradas,
o poeta oficial da vila hauer
e que, ao fim, não sou poeta oficial nem de mim mesmo

eu que toco trombone dentro de uma piscina vazia
eu que tenho queimaduras de terceiro grau por dentro
que cato os rebotalhos da cultura materialista e reciclo
do jeito que dá e não dá, e junco de esperança todos
os impedimentos

eu, exilado do país infinito
eu que manipulo venenos, que enlouqueço sozinho
e subo a montanha
como um profeta que engoliu a língua

este ser fronteiriço
entre azul e precipício

que escovo os dentes com chuva e maçarico

eu, meu corpo
que tenho a espessura da vida
e o tamanho exato
de meu cadáver

eu
coluna de fumaça
espelho quando mente
ferragem retorcida
rosto em branco (como um edifício ou um anjo
transitório)
minha cara inconfundível

uma palavra

(r
e
l
â
m
p
a
g
o) que não acaba nunca


Rodrigo Madeira

2 comentários:

Rita Medusa disse...

Nossa,deu overdose na cabeça,que fantástico este poema,palavras e idéias mágicas,rasgantes
Sou fascinada por tua poética Rodrigo

Otávio disse...

Você, e outros poemas..um quase augusto dos anjos trazido pros nossos dias, e em curitiba.
Afora isso, incomparável!
Ademais, não é preciso ser maior que o próprio cadáver pra ser incomparável